terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Natal na Confraria: palavras de Jacira Fagundes

A confrade Jacira Fagundes nos manda um conto natalino.
O Menino e o bom velhinho

Aquela era a primeira vez que encaravam a proximidade; estavam os dois, assim, frente a frente. Nos anos anteriores, a decoração do shopping abrangera vários espaços temáticos. Mas desta vez o pessoal responsável optara por um espaço único, uma praça surpreendente onde cabia todo o encantamento de uma Noite de Natal.
O primeiro a falar fora o velhinho, num raro momento de descanso entre uma foto e outra. O Menino talvez ainda dormisse, mas aquela voz rouca interrompeu seu despretencioso sono de criança.
- Como você é bonitinho, face rosada, este rostinho cheio. Fica aí todo tempo deitado nesta caminha dura, sem um colchãozinho decente, você não cansa, não lhe doem as costas?
- Estou acostumado e, além do mais, sou pequenino, não tenho cansaço pra carregar. Você, sim, tão velhinho, aí sentado o dia inteiro, sempre posando pra foto. Não queria estar no seu lugar.
- Não queria mesmo? Duvido. Percebeu como o povo todo me rodeia, como as> crianças me adoram, fazem questão de tirar foto comigo. Você está é com ciúme.
- Não é bem ciúme... me botaram aqui no mesmo dia em que armaram esta sua cadeira enorme na minha frente. Eu fiquei imaginando que só poderia ser para alguém muito importante – um trono. Só não sabia que era gente de tanto conhecimento, uma celebridade com tantas visitas para receber e conversar. E ainda rodeado de crianças. Elas só querem saber de você, nem se aproximam para me olhar, eu fico muito triste com esta indiferença de parte das crianças, principalmente.
- Pois deve ser triste mesmo, indiferença corrói a alma da gente. Mas aqui no shopping é tudo uma concorrência danada, pode até ser injusta, mas> competição é competição. O povo compete pelos presentes, as lojas competem pelos clientes, a criançada compete pelos brinquedos. Você nem imagina os pedidos dos pequenos, são de arrebentar qualquer bolso, e principalmente a bolsa, ainda mais com esta crise. E você aí neste ostracismo, deitado nesta mangedourazinha, não faz nada pra resgatar sua importância, que sei, é bem> maior que a minha, meu caro Menino.
- Tenho consciência disso. Mas as crianças não têm culpa. Sou capaz de apostar que nem meu nome elas sabem.
- Será? Mas você sabe quem sou eu.
- Claro que sei. Há meses que nesta terra só se fala em você. Jornais, outdoors, propagandas na TV, na Internet, em toda parte só dá você. Aliás, a gente está aqui conversando e eu nem sei se você é o verdadeiro ou uma das tantas imitações que andam por aí. Tem roupa sua por toda parte, qualquer um faz uma réplica barata, inventa barriga, cola uma barba horrorosa na cara, fica destilando dentro desta roupa incômoda e sai por aí. Olha, sem querer lhe desprestigiar, outro dia escutei que tem até bandido aproveitando a ocasião e se fazendo passar por você. Pelo menos disso eu estou livre.
- Lá isto é verdade. E vocêzinho aí vai ficar nesta plenitude, esperando que o povo se dê conta que é seu aniversário que está pra chegar? Esta gente é muito cara de pau, fica exigindo presente no seu lugar, uns aproveitadores é o que são. E o comércio bate palmas e enche o caixa. Sabe do que mais? Mexa-se. Ponha a boca no trombone, chame os seus amigos anjinhos, eles sabem tocar aqueles clarinetes com perfeição, podem convocar um pessoal pra sua festa onde você é que o aniversariante e o homenageado.
- Vou lhe contar um segredo. Eles mais preferem me ver morto do que vivo.
- Cruz credo! Que pecado, uma coisinha linda igual você.
- Não, não é bem assim. Sabe a sexta-feira da Paixão? É quando o povo enche as igrejas só para olhar meus pés e mãos furados de prego. E a coroa de espinhos na minha cabeça. Aí eles gostam, se sentem condoídos, fazem orações, alguns até choram. É a culpa, porque não me acompanharam desde pequenino como agora.
- É, vá entender. Opa, opa! Vamos ter que encerrar nosso assunto, Amiguinho. Vem vindo um bando de crianças, todas portando máquinas digitais, coisa bem chata. Até mais tarde.
- Antes, posso lhe pedir um favor, unzinho só?
- Você manda, meu Menino.
- Eu queria que, se fosse possível, você levantasse do seu trono e passasse aqui pro meu lado e pedisse que o fotógrafo do shopping batesse uma foto sua e das crianças, comigo junto. Depois que todos se forem você me mostra. Combinado?
- Combinado.
- Ah, você é mesmo o verdadeiro e bom velhinho, Papai Noel. Vai ser meu presente de Natal. Obrigado!

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